27 de abril de 2012

Aos pais

Se insisto na importância do olhar fundamental me conduzindo por um caminho ou outro, não estarei atribuindo excessiva responsabilidade à família primeira - aos pais?
Penso que é assim.
O amor primeiro, aquele entre pais e filhos, vai determinar nossa expectativa de todos os amores que teremos. Nossa vivência inicial vai marcar muitas de nossas vivências futuras.
Por isso, ter filhos e criá-los é cada dia gerar e pari-los outra vez, sem descanso.
Todo amor tem ou é crise, todo amor exige paciência, bom-humor, tolerância e firmeza em doses sempre incertas. Não há receitas nem escola para se ensinar a amar. Uma arena de combates destrutivos me prepara tão mal para ser uma pessoa inteira quanto o sossego artificial dos problemas ignorados. Lutas podem ser positivas, competição faz crescer; amar é impor e aceitar limites.
A relação familiar ocorre entre personalidades diferentes ou até antagônicas, predeterminadas a viverem longo tempo entre quatro paredes de uma mesma casa (sem possibilidade de divórcio se forem pais e filhos), reunidos num caldeirão fervente de desencontros e desconsertos:
"Sempre senti que minha mãe não sabia bem o que fazer comigo!"
"Meu filho desde bebê parecia sempre desconfortável, até nos meus braços."
"Nunca entendi o que realmente meu pai queria de mim, era sempre um estranho."
"Qualquer coisa química, de pele, não funcionava entre minha mãe e eu, a gente não gostava de se abraçar."
"Vivemos sempre em universos diferentes e distantes um do outro."
"Nunca consegui agradar à minha mãe, ela me criticava o tempo todo, e, mesmo agora que sou adulta e ela bem idosa, continuamos no mesmo tom."
"Meu pai parecia irritado só de me olhar. Me cobrava tudo. Por mais que eu me esforçasse, sempre me sentia seu devedor."
Esse grupo familiar que não escolhemos e nos define tanto pode ser um porto confiável de onde partimos e ao qual podemos retornar, ainda que em pensamento. Aquele lugar que será sempre o meu lugar, mesmo que eu já não viva nele.
Mas é necessário cortar com o que ele eventualmente tem de sufocante: pois pode ser também jaula, voragem, fundo de poço. Se ficarmos demais presos, teremos de nos puxar pelos próprios cabelos para outro espaço onde mesmo com susto e incertezas a gente possa respirar e decidir o que fazer agora.
Não podemos alterar o passado. Dramas familiares podem ser raízes venenosas por baixo da terra do convívio ou da alma. A lei do silêncio, do segredo obsessivo, pode constituir grave perturbação. Mas podemos mudar nossa postura em relação a tudo isso, ainda que em longos e dolorosos processos, que significarão a diferença entre vida e morte.
Posso me libertar. Posso me reprogramar para discernir o que é para mim, neste momento, o "melhor" - ou o possível.
Meu conceito de mundo inibe minhas decisões e me consome e faz encolher, ou me força a enfrentar alternativas. Nessa hora entrarão em jogo a minha bagagem inata, o que eu tiver construído em mim, os recursos aos quais posso apelar - e minha confiança de que posso realizar isso.
Não comandamos o destino das pessoas amadas, nem ao menos podemos sofrer em lugar delas, mas ter filhos é ser gravemente responsável. Não apenas por comida, escola, saúde, mas pela personalidade desses filhos: mais complicado do que garantir uma sobrevivência física saudável.
Não significa que nós os formamos ou deformamos como deuses onipotentes. Ao contrário, parte do drama de paternidade e maternidade é não podermos viver por eles nem os preservar de seus destinos. Fazer suas opções. Mas seguramente nossa maneira de ser, de viver e de pensar quando ainda eram pequenos, quando ainda pareciam "nossos", vai influir em tudo isso.
Não defendo os pais vítimas, que "por amor aos filhos" desistem de sua própria vida. Não admiro a mãe sacrificial que anula sua personalidade com a mesma alegação, para no fundo culpabilizar os filhos e lhes cobrar o que lhe "devem" e até o que "não devem".
Mas será sobre nós, nossa esperança ou pessimismo, nosso afeto ou frieza, que os filhos darão os primeiros de seus muitos passos. E farão isso com seus filhos futuramente. Serão tão fundamentais para eles quanto os pais de nossos pais foram na geração anterior.
Atrás e à frente de cada casal humano estende-se uma longa cadeia de erros e acertos geradores de humanidade.

Lya Luft, em Perdas e Ganhos

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